O texto a seguir foi construído a partir da colaboração de Lívia Rebouças (mestranda em Psicologia Social pela UFRN e membro do Observatório da População Infantojuvenil em Contextos de Violência – OBIJUV). Para ouvir clique no vídeo acima!
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Direitos Humanos, interseccionalidade e consubstancialidade. Cada um desses termos tem suas especificidades, tanto em relação a seus significados, quanto à materialidade. De maneira intensa, eles se relacionam, tanto no nível teórico, quanto no prático, à perspectiva feminista, como lente e ferramenta para enxergar e transformar a realidade.
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Após o fim da Segunda Guerra Mundial, em 10 de dezembro de 1948, foi aprovada a Declaração Universal dos Direitos Humanos. A Declaração foi um marco importante, que estabeleceu um conjunto de normas, visando à proteção da dignidade de todas as pessoas, considerando as individualidades e a relação das pessoas com a sociedade e com o Estado. Assim, fixou-se legalmente que os direitos à vida, à liberdade, à educação e ao trabalho, dentre outros, deveriam ser considerados universais, inalienáveis, indivisíveis e interdependentes. Isso independentemente do gênero, classe social, raça, etnia e orientação sexual. Entretanto, a forma como se estrutura a sociabilidade dentro do sistema capitalista faz com que essas diferenças sejam transformados em desigualdades. Assim, o acesso aos direitos não é garantido e ocorrem violações, sendo as mulheres negras marginalizadas as mais afetadas nesse processo.
Considerando isso, o movimento feminista negro questionou o feminismo branco, que tende a homogeneizar as mulheres, a partir de elementos como a branquitude, a heteronormatividade e a classe média. Nessas bases, na década de 1980, Kimberlé Crenshaw (uma jurista feminista estadunidense) propôs o conceito de interseccionalidade ao analisar os sistemas discriminatórios que atravessam sociedade. Ela apontou que as várias formas de opressão, que Crenshaw denomina de eixos insubordinação (racismo, sexismo, o capitalismo, LGBTfobia e o capacitismo, etc.), entrecruzam-se e afetam de maneira diferenciada cada pessoa. Isso produz diferentes graus de vulnerabilidade, especialmente no que diz respeito às vidas das mulheres negras. Assim, em que pese haver nesta perspectiva um destaque para o entrecruzamento entre raça e gênero, a partir do olhar interseccional, outros cruzamentos e sobreposições são possíveis, como considerar os impactos do racismo com a LGBTfobia, do sexismo com o racismo e o capitalismo e do racismo com capacitismo, dentre outros. Já
Já a partir de uma abordagem materialista e marxista, dentro do feminismo, na década de 1970, Danièle Kergoat – uma socióloga feminista francesa – propôs os conceitos de consubstancialidade e coextensividade. Segundo ela, há uma imbricação indissociável entre as relações de raça, de sexo e de classe, sendo sexo entendido como uma categoria socialmente construída, assim como as outras duas também o são. Segundo essa compreensão, essas três relações são consideradas estruturantes para a produção e reprodução do sistema capitalista, interagindo entre si dialeticamente de forma dinâmica e complexa na medida em que forma um nó no qual se interpenetram construindo umas às outras. Ou seja, no sistema que é racista, patriarcal e capitalista, a dependência da existência dos antagonismos, das contradições, das opressões e explorações (que fazem parte da dinâmica entre os diferentes grupos), está diretamente marcada pelas relações sociais de raça, de sexo, e de classe. Nesse sentido, ao contrário da possibilidade de exclusão, de sobreposição ou adição dos chamados eixos de subordinação (que acontece na interseccionalidade), na consubstancialidade toma-se como pressuposto fundamental que as análises do real necessariamente tem que partir da imbricação entre as relações sociais de raça, de sexo e de classe, sem haver uma hierarquia e sim uma movimentação entre elas. Portanto, em determinados momentos, uma pode estar mais aparente do que outra, mas, sem significar a sua exclusão, assim como nos indica a metáfora do nó.
Por fim, importante destacar que a materialização dos Direitos Humanos é um processo em construção, perpassado por barreiras e desafios, mas que tem encontrado nos feminismos comprometidos com a luta antirracista e anticapitalista, um instrumento para a transformação do mundo, seja por meio do conceito da interseccionalidade ou da consubstancialidade.
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Quer saber mais? Leia:
CRENSHAW, Kimberle. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas. Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, 2002. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2002000100011&lng=pt&tlng=pt
DAVIS, Ângela. Mulheres, Raça & Classe. Tradução Livre. Plataforma Gueto, 2013.
HILL COLLINS, Patricia. Em direção a uma nova visão: raça, classe e gênero como categorias de análise e conexão. In: MORENO, Renata (org.). Reflexões e práticas de transformação feminista. São Paulo: SOF, 2015, p. 13-42.
HUNT, L. A Invenção dos Direitos Humanos: Uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
SANTOS, B. de S.; CHAUI, M. Direitos humanos, democracia e desenvolvimento. São Paulo: Cortez, 2013.
FEDERICI, S. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Ed. Elefante,
HIRATA, Helena. Gênero, classe e raça Interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais. Tempo soc., São Paulo , v. 26, n. 1, p. 61-73, June 2014 .
KERGOAT, Danièle. Dinâmica e consubstancialidade das relações sociais. Novos estud. – CEBRAP, São Paulo , n. 86, p. 93-103, Mar. 2010 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002010000100005&lng=en&nrm=iso>.